21 de ago. de 2012

UM DISCURSO SOBRE A DOENÇA


UM DISCURSO SOBRE A DOENÇA:

BILHETES ENTREGUES AO SENHOR DOS PASSOS DE SÃO CRISTÓVÃO - SE.
Lúcia Maria Pereira
[1]



1. O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA



        Viver, morrer e adoecer reflete o estado de saúde de uma população, ou seja, sua realidade sanitária. Esse perfil sanitário analisado em seus componentes significativos tais como: a situação epidemiológica, o setor saúde, os serviços prestados e a produção que deles deriva revela sua determinação social.

        Um quadro nosológico (morbidade, mortalidade e natalidade) pode ser montado a partir das principais causas de demanda ambulatorial e internação hospitalar, todavia esse quadro se origina da precária condição de vida, da qualidade duvidosa da água ingerida, da falta de saneamento básico e educação sanitária – informação e cuidados básicos.

        Em outras palavras, as formas de viver, morrer e adoecer são determinados pelos modos de produção e pelas condições ambientais, muito embora dependam do propósito com o qual o setor saúde propicia o crescimento ou a reprodução dessas condições de vida, morte e adoecimento, a partir de seus saberes e práticas. Depende igualmente das forças sociais em relação ao setor saúde e dessas com a totalidade social, o que confere ao setor mudança e\ou legitimação.

       Portanto, o estado de saúde depende dos aspectos biológicos e econômicos da população e do quadro nosológico. Por exemplo: gastroenterites, afecções respiratórias e afecções originadas no período perinatal denunciam a precariedade das condições de vida, de saneamento básico e de cuidados preventivos com a saúde. A faixa etária e o sexo também determinam as formas de viver, adoecer e morrer, por exemplo: a mortalidade infantil tem íntima relação com a educação sanitária, e as alterações ligadas ao parto e à gestação são comuns em mulheres na faixa etária de 14 a 45, como também a mortalidade em homens adultos relaciona-se ao trabalho e às questões econômicas.

         As conceituações que abarquem o processo saúde-doença são sempre insatisfatórias, pois elas partem de um ponto de vista, de certo momento e com uma determinada finalidade. Mesmo que seja difícil conceituar saúde, pois ela não é percebida e aparece apenas diante de sua falta – a doença – cabe esboçar um conceito para a saúde como busca incessante de condições mais favoráveis ao uso de nossas potencialidades; uma busca que não está no individual e sim no coletivo e que tem de ser percebida, sentida e pensada de forma mais criativa para mudar nossa própria ação cotidiana.

         A doença, no entanto, além de um estado fisiológico ou reflexo desse estado na experiência do doente – uma mera representação da doença –, é uma forma complexa e dinâmica e faz parte de um sistema simbólico. O aprendizado de estar doente é gradativo e se faz no contato com profissionais, com outras pessoas doentes, pela literatura disponível sobre a doença e pela própria vivência. A doença é uma reflexão sobre o corpo físico e o vivido e revela a nossa própria vulnerabilidade. Ela atinge o doente, o curador (profissional ou indivíduos especializados em curas sagradas ou seculares) e o seu entorno.

        O entorno, ou seja, a rede de suporte social é representada por leigos – familiares e amigos do doente. O curador pode ser um profissional legalmente habilitado ou um leigo que presta um serviço de cura ao outro – um ato de fé e de assistência, geralmente gratuito ou pouco oneroso. Nesse último caso, trata-se de uma resposta afirmadora da cultura popular às questões cotidianas. O doente é aquele que vive no seu corpo a experiência mórbida, nele se desenvolve o processo do adoecer.

        A biomedicina, isto é, o sistema médico ocidental dominante (medicina alopática, científica, moderna, regular ou cosmopolita) tem seu foco na fisiopatologia como base para o diagnóstico e tratamento das doenças. Para ela intervir, é necessário ligar os sintomas e os sinais à estrutura ou ao funcionamento do organismo, um modo profissionalmente estabelecido de ouvir, falar, escrever e agir através dos aspectos fisiológicos da doença e da dimensão clínica do tratamento em vez de dar foco ao processo de adoecer. Ela ausculta a doença e não a pessoa doente o que propicia o desenvolvimento da hegemonia médica.

        Desde o reconhecimento dos sintomas até a busca de tratamento e cura, todos os aspectos do adoecimento são moldados por modelos culturais dos que sofrem, dos que cuidam, de todos os demais envolvidos e das dificuldades decorrentes de partilhar conceitos e pontos de vista, no percurso do processo saúde-doença.

       Nas interações entre a biologia e a cultura se podem compreender melhor as experiências da saúde, da doença e da cura. A doença mais que um conjunto de sinais físicos, é um complexo de experiências associadas a redes de significados e de interação social. Não é um fato isolado, mas um processo que reconhece sintomas, diagnóstico e escolhe a forma de tratar e de avaliar.  Dentro de um contexto cultural, um tratamento é considerado apropriado e esse processo terapêutico resulta da negociação de pessoas envolvidas.



2. OS EX-VOTOS: UMA FORMA DE REPRESENTAR A DOENÇA.



        A cultura popular afirma sua visão de mundo, necessidades, valores e relações sociais também em relação à doença. Os ex-votos[2] ligam-se à representação do processo saúde-doença – uma mediação que resulta da negociação com uma divindade.

        Conforme Silva (1981) a designação ex-voto aplicada a estes objetos sagrados é de origem erudita e resultante de práticas de relacionamento mágico; entretanto, jamais abandonou de todo as religiões, pois a liturgia – código dos rituais oficiais da Igreja – não desprezou a prática de oferendas votivas que enriqueciam os tesouros dos templos. Essa paraliturgia envolve práticas individuais e se manteve inalterável desde a mais remota Antiguidade – mais ou menos tolerada pelo catolicismo oficial. Associadas à magia e à religião, o voto é um ato propiciatório que antecede à graça – o desejado – ou é atributo de reverência e vassalagem. O ex-voto é a prática desobrigatória posterior à graça – o alcançado – como testemunho público da força da divindade (ou de seus agentes) e de gratidão do agraciado, pois cabe a ele narrar, testemunhar e difundir.

         Objeto de diversos estudos culturais, o ex-voto é debatido por historiadores, sociólogos e antropólogos. Os romeiros designam essas oferendas votivas como promessas ou milagres. A maioria das graças alcançadas se relaciona a problemas comuns: morte, doença, perigo e dificuldade, entre outros, mas o autor da súplica pode ser o agraciado ou não. Um aspecto da desobriga ou entrega de ex-voto é participar da cerimônia em circunstâncias especiais, usando vestes que procuram mimetizar o agraciado com a devoção (SILVA, 1981). 

        Outra forma é depositar uma promessa apenas para lembrar à divindade o pedido já feito, tratado como um ato superrogatório, uma súplica que se repete por mais de um ano.  Afinada com a idéia de contato, o depósito caracteriza a criação de um vínculo entre o depositante e o sagrado guardião, reflete um relacionamento espiritual. A qualidade artesanal e os desempenhos técnicos dos objetos não interferem nos seus estatutos exclusivamente sociológicos. Seja uma bela escultura ou uma simples fotografia ou bilhete o que caracteriza a promessa é o fato de ser constitutivo do desejo do ser humano de usá-lo para servir de intercâmbio com a divindade, seja como ato propiciatório, de agradecimento ou como ato superrogatório. As promessas comunicam a universalidade do processo social de troca.

        Ligadas à cura das doenças, as oferendas votivas foram agregadas às procissões e caracterizam-se como uma prática de medicina popular que o colono luso difundiu durante a fase do Brasil-Colônia. Essas práticas populares se desenvolveram com a chegada dos religiosos portugueses, foram utilizadas como forma eficaz pela Igreja oficial para combater as pestes e epidemias e sobrevivem em São Cristóvão - SE até os dias atuais graças à força da tradição, sendo um dos ritos desenvolvidos em torno da imagem do Senhor dos Passos.

        O resultado dessas práticas de desobriga votiva, desenvolvidas durante a colonização, em São Cristóvão formou um acervo de objetos sagrados, os quais compunham a iconografia da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, que no período imperial, passa também a se chamar Igreja Senhor dos Passos. A presença dos objetos justificava a denominação do “pátio dos milagres” para o claustro onde ficavam expostos para a visitação.

        Essa coleção de objetos, em 1990, torna-se o acervo do chamado Museu dos ex-votos e, em 2007, é retirado do claustro, local em que sempre estiveram guardados. Drasticamente resumido, o acervo é recolocado num salão localizado na lateral esquerda da referida igreja. O trabalho de reorganização do museu em 2008 gerou um documento chamado “Saltério de madeira”, texto pré-selecionado pela comissão do 24ª edição do Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade\2011, na categoria Pesquisa e Inventário de Acervos promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (PEREIRA, 2011).

        Em São Cristóvão, esses objetos servem de intercâmbio com uma imagem do Senhor dos Passos, à qual é atribuída a fama de ser milagrosa. Trata-se de uma escultura barroca, em tamanho natural, feita em madeira que faz parte de um conjunto formado por outras seis esculturas representativas dos chamados Sete Passos. Essas esculturas compunham a representação iconográfica da Paixão de Cristo e eram comuns nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo do período colonial.

        Tais igrejas eram construídas ao lado da Igreja da Ordem Primeira do Carmo e do convento dos frades carmelitas (conforme referiu Romeral (2009)), tal como ocorreu em São Cristóvão.

        Esboçada na Idade Média e trazida da Península Ibérica pelos carmelitas durante a colonização, a devoção ao Senhor dos Passos é uma das primeiras a se desenvolver em Sergipe, quando São Cristóvão ainda era capital da província. Vinculada ao período da Quaresma, a devoção tem uma característica penitencial, o que também lhe confere um tom roxo, comum desse tempo da liturgia católica.

        Esta pesquisa resulta da ação de reorganização desses objetos sagrados no novo espaço, no final do ano de 2008. O objetivo fundamental deste estudo é identificar, quantificar, classificar e analisar a relação dos objetos sagrados a partir da relação com a saúde\doença. Portanto, a pesquisa cumpre o papel de catalogar as promessas de São Cristóvão e classificar esses signos no contexto em que eles emergem, bem como os bilhetes.

        Esses objetos sagrados de caráter coletivo são expressivos de crenças mágico-religiosas associada à saúde, à doença e à cura e resultam de práticas profiláticas e terapêuticas da medicina popular, sendo expressão de uma dimensão ordenadora e classificadora dos sistemas simbólicos, os quais partem do pressuposto de que há uma ação regular e mecânica da natureza. A sua eficácia se assenta na crença coletiva no poder mítico desses objetos para representar situações que envolvem seres e coisas e destes com a divindade, através das leis de simpatia e antipatia num movimento de dar receber, e retribuir, uma ação que gera alianças e resulta em relações.

        O ex-voto é objeto da Antropologia religiosa, mas também da Antropologia médica, a considerar a Antropologia da Doença proposta por François Laplantine (2004, p.13-14), que faz estudos comparativos dos diversos discursos, conhecimentos e práticas na interpretação da doença e na resposta terapêutica, a partir dos quais, distingue dois campos de conhecimento e de significado: “o campo do doente” e o “campo do médico”. O primeiro esboça a etiologia subjetiva da doença, realizada pelos próprios doentes e é caracterizado pelo sofrimento e pela consciência da experiência mórbida (sentimentos), pois o significado que o doente atribui ao que lhe acontece não progride no mesmo ritmo da ciência; ele reinterpreta e filtra em função de sua carga simbólica. O segundo campo é o da atuação da medicina, que realiza diagnóstico, prognóstico e tratamento, produz os enunciados socialmente legítimos e fundamenta sua prática na recusa de uma parte da experiência do doente, “notadamente do prazer, do desejo, da linguagem e do triunfo sobre o sofrimento”.

        A etnologia microssociológica proposta por Laplantine (2004, p.15-18) sugere prestar atenção igualmente ao que é vivenciado pelos doentes e vivenciado pelos médicos em sua prática, ou seja, estudar a “doença em terceira pessoa”, que abrange o conhecimento médico objetivo e os valores médicos integrados ao imaginário da medicina. Mas também a “doença em primeira pessoa” – que engloba o estudo da subjetividade do doente que o faz perceber quando ele está mal ou em plena forma; também em primeira pessoa está o estudo da subjetividade do médico, pois ele também tem uma compreensão não médica da patologia e da terapia, uma vez que ele também é doente eventualmente. Os “processos de troca entre os que curam e os que são curados” acontecem entre o saber do doente sobre sua doença e a experiência vivida pelo médico, seja curando ou sendo curado.

        No itinerário etimológico proposto por Laplantine (2004, p.17, 18), com relação à doença tomada como objeto do conhecimento científico (ato de objetivação de um saber positivo), é importante e necessário que uma verdadeira antropologia da saúde se volte também para o doente, tornando-o um “autêntico polo de conhecimento”. Essa antropologia visa menos à doença e volta-se mais para a “ideia de doença e, também, olha menos para a cura (constatada pelas análises laboratoriais) do que para a “ideia de que os que curam e os que são curados fazem da doença e da cura sonhadas, imaginadas, espiritualizadas, representadas, ou seja, vivenciadas”.

        A cultura biomédica é difusa e largamente dominante, e a representação da doença se constrói através do contato com ela e sob sua influência. Essa cultura não seria capaz de confirmar a neutralidade que a ela se atribui, pois todo o discurso sobre a doença, incluindo o do médico, procede de uma seleção e elaboração, bem como de uma opção teórica. O discurso do médico, segundo Ségalen (1980, p.52-53), citado por Laplantine (2004), visa “transformar a ressonância emotiva em noções intelectuais, em mudar automaticamente as imagens concretas, terríveis enquanto imagens, em elementos abstratos do diagnóstico”.

        Laplantine (2004, p.213), após apresentar os processos etiológico-terapêuticos, ou seja, “como fiquei doente, como vou me curar”, faz o deslocamento das causas para as razões que provocaram a doença. Ao observar as diferentes respostas ao “porquê da doença”, tomando como exemplo um filme – Aller à Saint-Sabin, de 1981 – uma peregrinação a um santo curandeiro, este descreve a relação entre saúde e salvação[3], e coloca num novo ângulo o problema das possíveis relações entre indivíduo e sociedade. O autor observa dois tipos de situações, a primeira ocorre nas situações terapêuticas ou no uso de ervas, em que o religioso e o que se chama médico estão estreitamente ligados, cabendo ao antropólogo procurar o não dito, como no culto de Saint Sabin, uma prática da medicina popular; a outra acontece nas situações em que a função médica aparece desligada da função religiosa, assumindo uma especificidade e especialidade prática, como é o caso do exercício da medicina naturalista.

        A nova forma ou a forma residual da eventual dimensão religiosa (da medicina) não é percebida pela sociedade, nem pelos que são curados ou pelos que curam. O fundamento do conhecimento médico constituiu historicamente em uma lenta “desimplicação do mal” – uma concepção sacra ou filosófica do homem –, da história da doença evocada em sua positividade naturalista que, segundo Henry Ey (1981, p.3 apud Laplantine, 2004), tem como preâmbulo epistemológico “arrancar” a doença da religião, da filosofia e das ciências humanas a fim de resgatar uma “ordem natural”. O desejo de se libertar do pensamento “não científico” reflete a clivagem da natureza\cultura que separa o saber naturalista do saber mitológico – saber ambivalente.

        Laplantine (2004), partindo do culto a Saint-Sabin distingue dois modelos interpretativos contrários dentro da medicina popular, a doença-maldição e a doença-sanção. A desgraça resultante da maldição divina é uma interpretação religiosa como consequência de fatalidade, ou resultante de uma divindade maldosa, e gera resignação, prostração e purificação. Essa visão marca todas as culturas. Na doença-punição, ocorre o contrário, o doente é punido por negligência, por excesso ou mau comportamento, ou caracteriza uma transgressão coletiva das regras sociais. A doença aparece como pecado coletivo e individual e castigo merecido, associado às noções de responsabilidade, justiça e reparação.

     As promessas doadas ao Senhor dos Passos põem em evidência a doença como um caso particular da desgraça social e a saúde como a obtenção de salvação. O reconhecimento tanto do médico quanto do religioso, quando o indivíduo passa pela experiência de uma afecção que desconcerta literalmente sua existência ou quando a cultura vive uma crise de seus fundamentos, permite estudar as respostas interpretativas da desgraça social e das desordens biológicas às quais o grupo reage, por considerá-la calamidade.

     A medicina iludida pela despersonalização dos agentes patogênicos mágico-religiosos (divindades, gênios, feiticeiros), descontextualiza culturalmente a doença, ocultando a ligação do doente com a sociedade. Citando a mesma crítica à religião cristã feita por Terrin (1898, p.195), quanto ao fato de ter abdicado do seu potencial curativo, Meneses (2008, p.175) diz: “é totalmente lógico que a doença como mal, ou melhor, como concretização física e determinativa do mal”, entre no contexto das religiões e defronte-se com o problema da vida e do seu significado.

        Ouçamos agora o que dizem os romeiros de São Cristóvão – suas palavras.

        O que passaremos a transcrever é uma etiologia subjetiva da doença – o discurso do doente –, um discurso sobre a doença visto pelo sistema dominado, uma expressão do campo do doente, portanto uma Antropologia da Doença.



3. OS BILHETES DOADOS AO SENHOR DOS PASSOS



       Os bilhetes depositados pelos romeiros são pequenos textos que descrevem pedidos ou relatam brevemente graças alcançadas e são eminentemente simbólicos. O sentido discursivo, ou seja, o uso da linguagem com finalidade de sentido, com objetivo de significar elementos, contexto, valores diferenciados, está presente nesses breves textos e, como linguagem verbal, é reconhecido e codificado pela sociedade. O bilhete é o “dito” do romeiro e a intenção de ler o discurso sobre a doença presente neles – etiologia subjetiva do doente – tem por finalidade perceber as diferentes formas de comunicar e interpretar a cura. As transcrições dos bilhetes foram feitas mantendo os chamados erros de português, isto é, as variantes não padronizadas do português brasileiro e os desvios ortográficos, mas, eventualmente, alguma palavra foi traduzida para facilitar a fluidez da leitura da etnografia. Entre parênteses, está a numeração com a qual foram registrados no museu. 

        Vejamos o que esses símbolos dizem sobre o romeiro, a sociedade, a religião e a doença, sobretudo a crença na cura através do poder do Senhor dos Passos. Também a maneira como recriam o discurso da Igreja e da medicina. Estes textos permitem conhecer os valores e as intrincadas relações em que vivem, suas necessidades mais prementes e as ideias que podem estar sustentando suas crenças.

        Como símbolo, o bilhete pode representar qualquer romeiro e suas palavras, independentemente da singularidade de cada fiel. As palavras dirigidas ao Senhor dos Passos formam um código de comunicação, uma espécie de diálogo, não um diálogo único, mas o diálogo do crente e sua crença na cura e na salvação, um diálogo social, prenhe dos valores cristãos, mas permeado por enunciados médicos. Em grande maioria, trazem uma carga afetiva e emocional e refletem vínculos significativos de solidariedade humana – a subjetividade do doente. Em geral, é anônimo, embora quem escreva peça por pessoas cujos nomes são citados em parte ou integralmente. Também podem ser ingênuos quando são escritos por crianças ou adolescentes, ou confusos, se escritos por pessoas que têm pouco domínio da escrita. Nascem das necessidades humanas e se tornam palavras significadas, pedem ou agradecem uma cura, falam de uma doença, expressam um desejo ou uma vontade, são signos em natureza e essência. As palavras permitem conhecer um pouco do pensamento, valores e práticas desta cultura religiosa e ajudam na interpretação dos sentidos da representação – a promessa.

        Vistos como preces, os bilhetes permitem lançar luzes sobre as relações entre a crença e o rito, pois nela o crente age e pensa. A prece consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados; nela aparecem as razões, as circunstâncias e os motivos de sua enunciação, mas também é um credo e exprime ao menos um mínimo de ideias e de sentimentos religiosos. Uma prece não é apenas a efusão de uma alma, o grito de um sentimento – é um fragmento de uma religião. Nela, ouve-se ressoar o eco de toda uma imensa sequência de fórmulas: é um trecho de uma literatura, é o produto do esforço acumulado dos homens e das gerações, ela é, antes de tudo, um fenômeno social, pois, mesmo uma prece individual, é cheia de frases consagradas, ou seja, sociais. É um discurso ritual adotado por uma sociedade religiosa, e sua virtude e eficácia é a religião que proclama (MAUSS, 1979).

        Esses bilhetes expressam a livre conversação do indivíduo com o Senhor dos Passos e a Senhora das Dores. Diferentemente da prece de enunciado fixo que é estritamente litúrgica e tradicional – a exemplo do ofício a Senhor dos Passos[4] – os bilhetes são orações livres, individuais e interiores, cuja forma é escolhida pelo próprio crente, segundo seus sentimentos e motivações, podendo ser de expiação, de ação de graças, de solicitação, hino ou uma prece votiva. As promessas – os ex-votos – podem ser vistos como preces materializadas, assim como o escapulário, o rosário, o amuleto e as medalhas com dizeres. As promessas vistas como discurso sobre a doença são fragmentos do discurso do médico e do doente.

        Material etnográfico precioso por sua linguagem descritiva, o bilhete oferece elementos mais objetivos sobre o tipo de doença e a interpretação da cura imaginada. A linguagem verbal possui forte convenção entre significado e significante, ao contrário dos objetos, caracterizados pela linguagem não verbal, que exigem camadas de interpretação para serem retiradas.



A “PROMESSA” E O “MILAGRE”





        O dar não se constitui num ato desinteressado, e as retribuições são assimétricas, ambiguamente voluntárias e obrigatórias. Elas são trocas úteis e simbólicas, portanto, eficazes. O romeiro estipula a forma de retribuir – a estética da retribuição – a confecção e o modo de oferecimento; entretanto, a troca com o Senhor dos Passos é estipulada numa coletividade, ou seja, as pessoas que trocam são pessoas morais e não indivíduos. As trocas de bens garantem a circulação de riquezas, não no sentido econômico, embora ele esteja presente, e incluem bens mais ou menos alienáveis e também economicamente úteis ou não. Mas, o objeto das trocas na procissão de Passos são valores, regras e ideias. A troca de dádivas com o Senhor dos Passos cria um vínculo sobrenatural. O dar implica receber, entretanto, esse receber e dar assume múltiplas formas e conteúdos, torna-se um vasto sistema de prestações e contraprestações – e os bilhetes e as promessas expressam um pouco essa multiplicidade que engloba a vida dos romeiros.

        As promessas referem-se, em geral, a um momento posterior ao momento da escrita do bilhete – o voto, embora a entrega do objeto sagrado possa não ser precedida de um bilhete. O voto, o bilhete, sela um compromisso, uma dívida ou promessa, motivo pelo qual entre os romeiros se usa o termo promessa para se referir às oferendas – em verdade, o objeto é fruto da promessa. Através dele, o romeiro se compromete consigo, com o Senhor dos Passos e com sua comunidade de fé, como se pode ver nos trechos dos bilhetes seguintes:

“[...] eu prometo trazer um bote de vela.”; “[...] prometo trazer dois metros de fita”. 

        Ele informa a maneira como irá proceder para cumprir a dívida, que pode ser através de um signo:

“[...] Nosso Senhor parsso [Passos] neste méis [mês] eu esto [estou] pedindo a tua bensa [benção] i [e] a tua cular (cura) para minha mãe pala o no [no ano que vem] minha mãe vai fazer uma péna [perna] [...]” (Bilhete, acervo nº 3956, 2008).

        Também revela o gesto, a ação que está se comprometendo a realizar para cumprir a dívida caso seja atendido. Por exemplo: com o jejum de álcool, trazendo velas, fitas ou um signo que represente uma perna. Nalguns bilhetes, aparece a afirmação de fé – a prece –, a crença no poder milagroso do Senhor dos Passos:

“[...] sei que todos pedido [s] vai [vão] ser atendido [s]” (Bilhete, acervo  nº 3930, 2008);

“Eu deposito toda minha fé no seu puder [poder]” (Bilhete, acervo  nº 3978, 2008);

“Eu estou muito doente mim cura com teo [teu] pode [poder]” (Bilhete, acervo nº 3970, 2008).

        Outro diz:

       “[...] eu sinto dentro de mi eu vou ser curada do meu estomgro [estômago] pode ser grastete [gastrite] pode ser um câncer pode ser ferida sexu [sexo]. o que for mais [mas] eu cofio [confio] ei [em] Deus” (Bilhete, acervo nº 3945, 2008).

         Noutros bilhetes encontrei as seguintes palavras:

“Porque eu confio no seu milage [milagre] sei que eu vou aucacar [alcançar] este milagre” (Bilhete, acervo  nº 3948, 2008).

        O termo “milagre” também é atribuído a esses objetos, sugere uma coisa muito difícil de ser conseguida sem a ajuda e o poder da divindade. Segundo Silva (1981), o termo “milagre” é usado por pessoas que habitam em zonas urbanas, enquanto “promessa” seria o termo empregado por pessoas que moram na zona rural. Ao informar como ele procederá para pagar a “promessa”, alguns poucos propõem uma troca de favores com o Senhor dos Passos. O mais comum, todavia, é que o romeiro se vincule à divindade a partir de um episódio particular e passe a visitar anualmente o santuário como forma de gratidão, de retribuição:

“[...] me ajude meu Deus aeu racopera [a eu recuperar] a minha saúde pelo amor de Deus quedo [quando] eu fica [ficar] sar [sã] eu vou compra 2 [dois] metro [s] de fita branca para Sonho [o Senhor] do [s] Passo [s]” (Bilhete, acervo nº 3966, 2008);

“[...] que eu fique curado da minha cabeça para sempre que eu vou para viacaqia [Via Sacra] de peis de cauco [pés descalços] veteda de Branco [vestida de branco]” (Bilhete, acervo nº 3965, 2008);

“[...] faca [faça] com que dizapareca [desapareça] toda inconia [insônia] toda depressão todo nervocismo [nervosismo] que eu rezo 1 pai de nosso 1 ave maria [Maria] e Santa Maria i do [e dou] 1 vela branca 1 dia de segunda feira” (Bilhete, acervo  nº 3975, 2008).

        O romeiro também conta com a ajuda do Senhor dos Passos para cumprir seu voto:

 “Sei que vou se [ser] curada com sua ajuda vou paga [pagar] minha promeca [promessa]” (Bilhete, acervo nº 3964, 2008).

        O bilhete comunica de forma breve:

“Que o senhor mim der [dê] um Otimo [ótimo] Parto” (Bilhete, acervo nº 3991, 2008),

        Ou de forma mais extensa:

“Deus tudo que eu mais quero na vida é um filo (filho) Não importa ele menino ou menina só rezo que venha com saúde. Eu quero senhor poder ter a graça de ser mãe, poder sentir o amor de um filo mim preocupar, rir, chorar amar um amor que nunca amei, um amor de mãe (Bilhete, acervo nº 3923, 2008). 

        Os bilhetes se caracterizam quanto ao conteúdo em agradecimentos e pedidos ou podem conter ambos. O destinatário pode ser o autor, um ou vários parentes ou mesmo amigos e conhecidos. Quanto ao objeto do pedido: saúde, emprego\aposentadoria, casa, felicidade, paz, libertação, purificação, casamento, ter filhos, sucesso profissional, etc. Quanto à forma de pagar a dívida: trazer objetos, realizar penitência, queimar fogos de artifício. O teor desses bilhetes revela, portanto, as íntimas relações entre os romeiros e outros ritmos de equilíbrio dos quais necessita para manter a sua saúde, seus laços de solidariedade e parentesco, pedindo pela família e amigos, pelo marido, pelo namorado, pelo cunhado, pela tia, pelo pai, pelo vizinho, pelo afilhado, neto, irmão, sobrinha, colega, ou também de forma mais ampla e social, como nesse bilhete que transcrevo integralmente:

“Agradecimento, consagração e fortalecimento nas caminhadas deste ano que se segue e nos que virão, a todos os meus amigos, conhecidos e colegas de trabalho, alunos e familiares. Proteção e saúde aos necessitados, doentes, encarcerados, famintos e oprimidos. Também por todos seres viventes. Senhor guiai a todos nós, nossos passos e ao mundo inteiro. Que seja feita a vossa vontade. Amém.” (Bilhete, acervo nº 181, 2010).

        A grande maioria dos bilhetes comunica um pedido do fiel, entretanto, num menor número deles o romeiro faz um agradecimento que pode ser muito breve mantendo o sigilo do que foi conseguido:

“[...] obrigado pela minha cura” (Bilhete, acervo nº 3944, 2008);

“[...] obrigado por te [ter] atendido o meu pedido” (Bilhete, acervo nº 3977, 2008).        
 


OS MOTIVOS DOS PEDIDOS E AGRADECIMENTOS

        Entre situações tratadas nesses pedidos e agradecimentos, nos 357 bilhetes examinados, predominam os motivos de doença física (45,79%), dificuldades espirituais e psicológicas (12,04%) e também questões sociais (42,17%), uma confirmação da visão abrangente das camadas populares em relação à doença e à cura. As doenças e os vícios ocupam um percentual significativo entre os motivos que levam os romeiros a pedir graças ou agradecer por bênçãos, assim como questões sociais que incluem emprego, moradia, estudo e bens materiais. Para melhor entender as interpretações da doença pelos romeiros, tomo por base a seguinte divisão quanto à origem das doenças: doenças fisiológicas, doenças de origem espiritual (pecaminosas e demoníacas), doenças psicológicas e as doenças sociais relatadas nesses bilhetes. As doenças de origem espiritual tomam por base o mal e o pecado como explicação, gerando como interpretação os modelos sanção\punição, maldição e salvação.



1 DOENÇA DO CORPO FÍSICO




        A compreensão da doença como resultado de desarranjos biológicos resulta na aceitação dos diagnósticos médicos, mesmo que recorram à crença no poder e na força de Senhor dos Passos para resolver a situação de doença. Assim, o romeiro pede, roga e suplica:

“[...] leve todos os males e todas as causas dessa alopecia de minha filha [...]” (Bilhete, acervo nº 41, 2010);

“Que eu consiga a recuperação da minha coluna.” (Bilhete, acervo nº 122, 2010);

“[...] com o seu poder todas as células fiquem sadias [...]” (Bilhete, acervo nº 8, 2010);

“[...] tira esse nódulo do meu seio.” (Bilhete, acervo nº 148, 2010);

“[...] livre desse mioma e fique grávida [...]” (Bilhete, acervo nº 165, 2010);

“[...] fique boa da doença dela que é alergia [...]” (Bilhete, acervo nº 42, 2010);

“[...] pedir pela minha artrite reumatóide [...]” (Bilhete, acervo nº 55, 2010);

“[...] que ela não venha a operar os olhos [...]” (Bilhete, acervo nº 156, 2010);

“[...] curai a diabete da minha mãe [...]” (Bilhete, acervo nº 179, 2010);

“[...] agradeço pela cura do meu câncer e o restabelecimento da minha saúde.” (Bilhete, acervo nº 4001, 2008);

“[...] pela graça alcançada na realização da retirada de um tumor de hipófise, em três cirurgias [...]” (Bilhete, acervo nº 127, 2010).

        Os termos usados – alopecia, coluna, células, nódulo, seio, mioma, grávida, alergia, artrite reumatóide, diabetes, câncer e tumor de hipófise – demonstram o contato dos romeiros com a linguagem da medicina científica, os enunciados médicos. Estes termos legitimados socialmente e produzidos pela medicina através do “campo do médico” – o sistema dominante – aparecem modificados em função da carga simbólica do doente (LAPLANTINE, 2004). O discurso da doença, elaborado pelas religiões populares, se constrói no interior e a partir dos discursos oficiais, exprimindo as contradições que encerram a sua produção, portanto, os grupos subalternos são capazes de minimizar, subverter e improvisar nos sistemas de forças a que estão submetidos, como referiu Montero (1985). O discurso da religião mistura-se ao discurso médico e na linguagem do doente aparece como desejo de vitória sobre a doença e o sofrimento através da intercessão do Senhor dos Passos:

 “[...] que um [o] senho [senhor] retirem [retire] toda as dor menteza [dormência] das mão [s] cular [cura] minha vista cular [cura] as minha pena [penas]  retiral [retira] as dormenteza [dormência] das pena [pernas] a me [minhas]. Ti [te] amo” (Bilhete, acervo nº 3956, 2008).

         Nos bilhetes, os motivos das doenças aparecem de forma breve e específica, pois abrangem contextos familiares mais amplos, onde o romeiro pede pela paz e saúde de forma geral. Mas pode ser mais específico e pedir a cura de certa enfermidade, certo órgão doente nele mesmo ou num ente querido:

“Hoje eu pesso [peço] especialmente por minha irmã Edeleuza que e [é] uma pessoa tão sofrida que Deus de [dê] a cura e cobata [combata] esse câncer que ela têm [tem.] senho [Senhor] cura minha mãe meu pai dessa diabete [diabetes] pressão senho [Senhor] meu pai Edson que o senho [Senhor] cure todas as dores do corpo dele senho [Senhor] cura Alex Cris” (Bilhete, acervo nº 3970, 2008).

        Outros bilhetes são mais concisos e diretos, como se segue:

“[...] agradeço pela cura do meu câncer e o restabelecimento da minha saúde” (Promessa nº 4001, 2008); “peço a cura dessa intocicação [intoxicação] que ainda não encontrei remédio” (Bilhete, acervo nº 50, 2010);

“Daime [Dai-me] a cura e o funcionamento dos meus rins” (Bilhete, acervo nº 4007, 2008); “[...] que mim caure [cure] do meu estomgo [estômago]” (Bilhete, acervo nº 3982, 2008);

“Pela saúde [de] Auxiliadora pela recuperação da depressão [.] Por Elmiro que ele venha ser curado da adenóide” (Bilhete, acervo nº 4034, 2008).



2 DOENÇA-PUNIÇÃO OU DOENÇA-SANÇÃO





        Ao se confrontarem com o “porquê da doença”, como se referiu Laplantine (2004), alguns romeiros a interpretam como fruto do pecado e atribuem sua a cura à fé, um modelo interpretativo que o autor refere como “doença-punição”. Essa forma de perceber a doença e a cura pode ser vista no seguinte trecho do bilhete transcrito a seguir:

 “[...] nessa quaresma quero me penitencia [penitenciar] com jejum do alcoo [álcool] em reparação da minha fé” (Bilhete, acervo nº 629, 2009).

        Para perceber a concepção da doença referida como mal ou fruto do pecado, na qual a religião é utilizada como força terapêutica para a extirpação do mal, ou seja, – a cura estando na dependência da ação de Deus –, ressalto as seguintes passagens de bilhetes que ilustram essa forma de interpretar a doença e a cura:

“Pesso [Peço] que perdoi [perdoe] o meu pecado. Que muita coisa que eu fazia não faço mais” (Bilhete, acervo nº 3977, 2008);

“Para que eu não sofra Deus tei [tem] de olha [olhar] para mi [me] fazer feliz. arrancano [Arrancando] pela Raiz este mal que mi [me] prodijica [prejudica]” (Bilhete, acervo nº 3946, 2008);

“Sei que toda doença vai eibora [embora] para sempre todo mal que sinto continui [continue] na fé não vou de sistir [desistir] da minha fé” (Bilhete, acervo nº 3964, 2008).



3 DOENÇA-MALDIÇÃO





        O modelo interpretativo da “doença-maldição”, conforme proposto pelo antropólogo francês Laplantine (2004), pode ser percebido na seguinte transcrição:

“[...] livre-nos dessa peste maldita [o câncer] e que minha mãe se livre desse mioma e fique grávida [...]” (Bilhete, acervo nº165, 2010).

        A desgraça aparece como resultante de uma fatalidade ou de uma divindade maldosa. A positividade naturalista da medicina e a sua intenção em arrancar a doença da religião e da magia não foram eficazes; é o que demonstra a fala desse fiel. O discurso sobre a doença presente nos bilhetes que são transcritos adiante demonstra que o mal e suas origens estão presentes nas respostas, nas interpretações da doença e da cura.

        A concepção do mal seja de origem sacra, filosófica ou da feitiçaria se mescla na visão mágico-religiosa que se expressa, por exemplo, assim:

“[...] que eu tenha o corpo fechado.” (Bilhete, acervo nº191, 2010);

“[...] me faça uma menina boa” (Bilhete, acervo nº149, 2010);

”[...] livra-nos das perseguições, dos malefícios, macumbas [...]” (Bilhete, acervo nº168, 2010);

“[...] coloque uma barreira e não deixe que os olhos dela me enchergue [enxergue].” (Bilhete, acervo nº169, 2010);

“Nossa Senhora das Dores leve todas estas dores do meu corpo toda essas doença” (Bilhete, acervo nº 3951, 2008);

“[...] faz uma vizita [visita] a iago [Iago] curando ele de todo mal toda doença que estive sintindo [sentindo] agorra [agora] e sempre mostra seu puder [poder.]” (Bilhete, acervo nº 3961, 2008);

“[...] fazem [fazei] com que este mal mi [me] dizapareca [desapareça] que eu sinto na cabeça i [e] no meu corpo cofio [confio] ei [em] seu puder [poder] o seu [a sua] graça i [e] minha fé” (Bilhete, acervo nº 3962, 2008).

        O Senhor dos Passos e a Senhora das Dores, além de protetores e intercessores divinos, são também vistos como curadores, tratadores e também feiticeiros e mágicos, como se viu nas falas acima. O sincretismo a que tantos referem aparece em meio a esses pedidos numa demonstração de que a medicina popular e a religião popular recebem influência das culturas de negros, indígenas e brancos. 



4 DOENÇA-SALVAÇÃO





        O sentido de salvação associado à doença se exprime nos pedidos por “libertação” pelo vício de fumar, beber que são numerosos e, em sua maioria, feitos pelos irmãos, sobrinhos, amigos, esposas e, principalmente, pelas mães aflitas, como por exemplo:

“A saúde do meu filho Sivaldo qui [que] liberta ele desse mal mae zinha [mãezinha][5] do céu” (Bilhete, acervo nº 4029, 2008);

“Virgem mãe das dores entercede [intercede] por este filho N.P.M. do vício do álcool te agradeço” (Bilhete, acervo nº 34, 2010);

“[...] que meu filho vai ser liberto desta bebida” (Bilhete, acervo nº 4042, 2010);

“[...] que ajudar também meu pai que de para de [ele] beber” (Bilhete, acervo nº 642, 2009);

“[...] para que meu tio E.S. pare de beber aquele alcool” (Bilhete, acervo nº 4045, 2008);

“[...] venho através desta pedir que realize um milagre de libertação em R.S.N. dos vícios de jogar e beber; com isso prometo que o levarei a procissão de Senhor dos passos vestido de roxo” (Bilhete, acervo nº 3999, 2008);

        Um deles é mais enfático, trata-se de um superrogatório, citado anteriormente. Expressa o tempo de espera pela graça de uma “mãe sofredora”:

“Pela segunda vez venho pedir pela libertação da bebida e das drogas por J.R.F.C. si [se] eu alcançar esta graça com fé em Deus no próximo ano estarei aqui trazendo uma foto dele como agradecimento. Ao nosso Sr. dos Passo. Olha por essa pobre Mãe tão sofredora” (Bilhete, acervo nº 163, 2010);



        O excesso, a negligência, o mau comportamento, a transgressão às regras sociais são tidos como pecados individuais ou coletivos, gerando a doença, o vício, que é visto como mal e para ele se pede libertação e cura, um sentido de salvação para um mal que é moral, religioso, não apenas físico de dependência da droga. Em alguns poucos bilhetes, o pedido é feito pela própria vítima do vício:

“Senhor dos passos que me ajude que eu deixe as drogas e mi [me] lhifre [livre] ds [dos] maus olhos grosso [s]” (Bilhete, acervo nº 36, 2010);

“Senhor dos passos, min Ajude avencer [a vencer] meus obstáculos da minha vida, retira esta cachaça da minha vida... min [me] liberta desta [deste] mal” (Bilhete, acervo nº 64, 2010).



5 DOENÇA PSICOLÓGICA





        O entendimento da doença psicológica como mal pode ser percebido no bilhete a seguir, pois ele relata uma série de medos (doença psíquica) associados a doenças físicas que a romeira identifica como o que a impede de ser feliz e de se salvar:

“Eu vou cer [ser] curada do mal que eu sinto que e [é] fumar medo de cer [ser] feliz. Medo de viajar de pressão [,] tontice na cabeça [,] grastite nervoza [gastrite nervosa] usra [úlcera] tirroide [tireóide] ei fim [enfim] todas as doença que mi [me] atrapalha minha vida espeiro [espero] que eu vou ser felize [feliz] para sempre si [se] Deus quiser” (Bilhete, acervo nº 3944, 2008).



        Segundo Montero (1986), a eficácia do pensamento mágico na cura de distúrbios psicossomáticos se funda na sua capacidade de atribuir significados às desordens fisiológicas. O mito oferece uma linguagem a partir da qual a dor, a ansiedade e a confusão podem ser formuladas, pois ele produz significado e esta linguagem é muito mais eficiente do que a linguagem médico-científica, que antepõe a relação micróbio-doença como possibilidade à cura. A medicina limita a interpretação das disfunções orgânicas aos sintomas fisiológicos, enquanto a interpretação mágico-religiosa integra os problemas domésticos, amorosos e financeiros, pois tem a ver com a desorganização pessoal, familiar e social do sujeito: desemprego, conflitos familiares e as crises.



6 DOENÇA SOCIAL 





       Os bilhetes que relatam pedidos, desejos e conquistas sociais e financeiras são em número significativo e demonstram que as questões sociais para os romeiros estão intrinsecamente ligadas ao desejo de melhorar a vida:

“[...] que minha mãe ganhe uma casa própria.” (Bilhete, acervo nº 628, 2009);

“[...] pelo meu pão de cada dia e pelo trabalho do meu marido.” (Bilhete, acervo nº 671, 2009);

“[...] solte este nó de sair o meu empreste [empréstimo] para pagar minhas dívidas.” (Bilhete, acervo nº174, 2010);

“[...] ajude eu na faculdade do meu filho [...]” (Bilhete, acervo nº 681, 2009);

“[...] passar no meu vestibular [...]” (Bilhete, acervo nº644, 2009);

“[...] obtermos um bom emprego.” (Bilhete, acervo nº4012, 2008);

“[...] ter nossa casa mobilhada.” (Bilhete, acervo nº4016, 2008);

“[...] agradeço pela aquisição dos meus sobrinhos [...]” (Bilhete, acervo nº4015, 2008).



        Conforme Canesqui (1998 p.24 apud Meneses, 2008, p.183-184), “são totalizantes as representações de saúde, doença das classes trabalhadoras, por abranger concepção do homem como corpo, alma, matéria, espírito, e incluir as relações afetivas e as condições de vida e trabalho”.  A cura – considerada como recuperação do corpo e, de modo mais abrangente, como salvação da alma – para Terrin (1998 apud Meneses, 2008), é o bem mais precioso que é buscado ainda que de forma dúbia, ao tentar conciliar a terapia médica oficial à terapia religiosa, a primeira por medicamentos e a segunda por orações e curas esperadas.

          As palavras escritas nos bilhetes acabam por se fechar na sua natureza de signo. O que elas dizem é o que de fato os romeiros quiseram dizer: “libertai”; “abençoai”; “iluminai”, “retirai”; “tocai a cabeça”; “min [me] cure das enfermidades”; “perco [peço] a minha saúde e minha paz”; “te peço liberte meu filho das drogas”; “dai a cura e a libertação”; “dê a paz e união”; “abre meus caminhos”; “peço crê mais”; “peço ajuda”; “a graça de um emprego”; “a graça desse filho”; “que deixe o alcoolismo”; “que eu consiga meu trabalho [e] terminar minha casa”; “vender o carro”; “conseguir um companheiro maravilhoso”. Nessas palavras, não resta dúvida, nem há espaço para interpretações, no entanto, enquanto documento, seu discurso é polissêmico e enunciador e anunciador e se faz, por diversas formas e sujeitos, o dito e o não dito. As dispersões que passam a fazer parte dessas articulações estão aí presentes.

         O museu dos ex-votos de São Cristóvão - SE comunica a gratuidade de um Deus que responde ao que pede no mais simples e verdadeiro ato de fé e também comunica através daquele que recebeu de Deus uma graça e lhe agradece retribuindo com palavras, gestos e coisas. Pede crendo que será atendido e confia na graça que é dádiva divina e dom divino. Em síntese: pedir e agradecer. O crente pede, Deus dá, o crente recebe e retribui. A crença na cura torna o “milagre” e a “promessa” simples e cotidianos. 

        A promessa reforça a fé do crente e expressa o poder da divindade, mas também é um aspecto do comportamento do doente em relação à doença e à medicina. Ao ler a doença com outra visão, exprime com outra linguagem e a associa a um discurso de ascetismo místico. A promessa expressa também uma necessidade de falar da doença e da cura.

        A promessa exprime um pensamento religioso ou mágico-religioso e também médico-mágico. Como documento e discurso, a promessa exprime a relação da doença com o sagrado e da doença com o social. É um discurso do campo do doente, mas também do campo sóciomédico, manifestado numa cerimônia religiosa, reflete a subjetividade do doente e confirma uma identidade entre medicina popular e a religião popular. Evidencia o aspecto profilático e terapêutico da religião e o caráter abrangente da percepção de doença e da cura das medicinas populares.

        A entrega de promessas como resposta às aflições de natureza corporal, amorosa e econômica, refere-se à polifuncionalidade da procissão. O desejo de saúde física, como a cura do câncer, a queda de cabelos, a dormência nas pernas, a saúde de um animal de estimação, entre outras; o desejo de ter filhos, casar, ser feliz, refazer o casamento, ter paz se soma aos desejos de ter emprego, casa própria, estudo, carro e outros bens materiais. O discurso da doença no campo do doente é uma linguagem da Antropologia médica e da Antropologia religiosa, que neste trabalho, foi analisado, mas, sobretudo, aponta a necessidade de aprofundamento maior sobre essa temática tão cara aos religiosos católicos e tão importante nos estudos na área das Ciências Sociais.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS





EX-VOTO. In: HOUAIS, Antônio et al. Dicionário Houais da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.1ª Edição, p.864.



LAPLANTINE, François. Antropologia da Doença. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução, Walter Lellis Siqueira. Parte I, IV.



MAUSS, Marcel. A prece. In: Oliveira, Cardoso (org.). Mauss: Antropologia. São Paulo: Ática, 1979 (Coleção Grandes Cientistas Sociais). Cap.3, p.102-146.



MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. In: Marcel Mauss: Sociologia e Antropologia. Tradução, Paulo Neves. São Paulo: Cosacnaify, 2011. Primeira parte.



MENESES, Jonatas. Pentecostalismos e os rituais de cura divina: personagens e percursos. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008. Cap. IV, p.163-258.



PEREIRA, Lúcia Maria. Saltério de Madeira. Dossiê da reorganização do Museu dos ex-votos de São Cristóvão – SE. Selecionado na 24ª edição do Prêmio Rodrigo de Melo Franco Andrade. Aracaju, 2011.



ROMERAL, Fernando Millan, O. Carm. Suyo afectísimo. In: Revista Escapulario del Carmen. España: Orden do Carmen, 2009.Tomo 106\nº1338, 2, enero, p.7.



SALLES, O. Carm, Francisco de. Devocionário ao Senhor Jesus dos Passos. Aracaju: Info Graphics, 2010.



SILVA, Maria Augusta Machado da. Ex-votos e orantes no Brasil. Leitura museológica. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1981. (Coleção Estudos e documentos), v. VI.



[1] A autora é formada em Odontologia, é Sanitarista e Especialista em Saúde Mental Coletiva e Mestre em Antropologia pela UFS.

[2] Segundo Houais (2009), ex-voto é um quadro, pintura ou objeto a que se conferiu uma intenção votiva. ETIM. locução latina; prep. Ex de ablativo, por causa de, em virtude de e voto ablativo singular de votum, i ‘voto’do radical de votum, supino de vovere ‘fazer voto, obrigar-se’.

[3] Laplantine (2004) observa que a raiz indo-europeia san (=conservação de si mesmo) deu, ao mesmo tempo, sanitas (=saúde) e salvatus (=salvação). Conforme nota nº 2, p.218.
[4] Apesar de ser conhecido como Ofício de Passos, reza-se o ofício da Paixão de Jesus Cristo. Trata-se de um ato precatório que ocorre por sete sextas-feiras seguidas, iniciado uma semana antes do início da Quaresma. Esse ofício foi republicado em 2010 pelos carmelitas (Salles, 2010).

[5] Alguns bilhetes são dirigidos a Nossa Senhora das Dores.