UM DISCURSO SOBRE A DOENÇA:
1. O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
Viver, morrer e adoecer reflete o estado de saúde de uma população, ou
seja, sua realidade sanitária. Esse perfil sanitário analisado em seus
componentes significativos tais como: a situação epidemiológica, o setor saúde,
os serviços prestados e a produção que deles deriva revela sua determinação
social.
Um quadro nosológico (morbidade, mortalidade e natalidade) pode ser
montado a partir das principais causas de demanda ambulatorial e internação
hospitalar, todavia esse quadro se origina da precária condição de vida, da
qualidade duvidosa da água ingerida, da falta de saneamento básico e educação
sanitária – informação e cuidados básicos.
Em outras palavras, as formas de viver, morrer e adoecer são
determinados pelos modos de produção e pelas condições ambientais, muito embora
dependam do propósito com o qual o setor saúde propicia o crescimento ou a
reprodução dessas condições de vida, morte e adoecimento, a partir de seus
saberes e práticas. Depende igualmente das forças sociais em relação ao setor
saúde e dessas com a totalidade social, o que confere ao setor mudança e\ou
legitimação.
Portanto, o estado de saúde depende dos aspectos biológicos e econômicos
da população e do quadro nosológico. Por exemplo: gastroenterites, afecções
respiratórias e afecções originadas no período perinatal denunciam a
precariedade das condições de vida, de saneamento básico e de cuidados
preventivos com a saúde. A faixa etária e o sexo também determinam as formas de
viver, adoecer e morrer, por exemplo: a mortalidade infantil tem íntima relação
com a educação sanitária, e as alterações ligadas ao parto e à gestação são
comuns em mulheres na faixa etária de 14 a 45, como também a mortalidade em
homens adultos relaciona-se ao trabalho e às questões econômicas.
As conceituações que abarquem o
processo saúde-doença são sempre insatisfatórias, pois elas partem de um ponto
de vista, de certo momento e com uma determinada finalidade. Mesmo que seja
difícil conceituar saúde, pois ela não é percebida e aparece apenas diante de
sua falta – a doença – cabe esboçar um conceito para a saúde como busca
incessante de condições mais favoráveis ao uso de nossas potencialidades; uma
busca que não está no individual e sim no coletivo e que tem de ser percebida,
sentida e pensada de forma mais criativa para mudar nossa própria ação
cotidiana.
A doença, no entanto, além de um
estado fisiológico ou reflexo desse estado na experiência do doente – uma mera
representação da doença –, é uma forma complexa e dinâmica e faz parte de um
sistema simbólico. O aprendizado de estar doente é gradativo e se faz no
contato com profissionais, com outras pessoas doentes, pela literatura
disponível sobre a doença e pela própria vivência. A doença é uma reflexão
sobre o corpo físico e o vivido e revela a nossa própria vulnerabilidade. Ela
atinge o doente, o curador (profissional ou indivíduos especializados em curas
sagradas ou seculares) e o seu entorno.
O entorno, ou seja, a rede de suporte social é representada por leigos –
familiares e amigos do doente. O curador pode ser um profissional legalmente
habilitado ou um leigo que presta um serviço de cura ao outro – um ato de fé e
de assistência, geralmente gratuito ou pouco oneroso. Nesse último caso, trata-se
de uma resposta afirmadora da cultura popular às questões cotidianas. O doente
é aquele que vive no seu corpo a experiência mórbida, nele se desenvolve o
processo do adoecer.
A biomedicina, isto é, o sistema médico ocidental dominante (medicina
alopática, científica, moderna, regular ou cosmopolita) tem seu foco na
fisiopatologia como base para o diagnóstico e tratamento das doenças. Para ela intervir,
é necessário ligar os sintomas e os sinais à estrutura ou ao funcionamento do
organismo, um modo profissionalmente estabelecido de ouvir, falar, escrever e
agir através dos aspectos fisiológicos da doença e da dimensão clínica do
tratamento em vez de dar foco ao processo de adoecer. Ela ausculta a doença e
não a pessoa doente o que propicia o desenvolvimento da hegemonia médica.
Desde o reconhecimento dos sintomas até a busca de tratamento e cura,
todos os aspectos do adoecimento são moldados por modelos culturais dos que
sofrem, dos que cuidam, de todos os demais envolvidos e das dificuldades
decorrentes de partilhar conceitos e pontos de vista, no percurso do processo
saúde-doença.
Nas interações entre a biologia e a cultura se podem compreender melhor
as experiências da saúde, da doença e da cura. A doença mais que um conjunto de
sinais físicos, é um complexo de experiências associadas a redes de
significados e de interação social. Não é um fato isolado, mas um processo que
reconhece sintomas, diagnóstico e escolhe a forma de tratar e de avaliar. Dentro de um contexto cultural, um tratamento
é considerado apropriado e esse processo terapêutico resulta da negociação de
pessoas envolvidas.
2. OS EX-VOTOS: UMA FORMA DE REPRESENTAR A DOENÇA.
A cultura popular afirma sua visão de mundo, necessidades, valores e
relações sociais também em relação à doença. Os ex-votos[2] ligam-se à representação do processo
saúde-doença – uma mediação que resulta da negociação com uma divindade.
Conforme Silva (1981) a designação ex-voto aplicada a estes
objetos sagrados é de origem erudita e resultante de práticas de relacionamento
mágico; entretanto, jamais abandonou de todo as religiões, pois a liturgia –
código dos rituais oficiais da Igreja – não desprezou a prática de oferendas
votivas que enriqueciam os tesouros dos templos. Essa paraliturgia envolve
práticas individuais e se manteve inalterável desde a mais remota Antiguidade –
mais ou menos tolerada pelo catolicismo oficial. Associadas à magia e à religião, o voto é um ato
propiciatório que antecede à graça – o desejado – ou é atributo de reverência e
vassalagem. O ex-voto é a prática desobrigatória posterior à graça – o
alcançado – como testemunho público da força da divindade (ou de seus agentes)
e de gratidão do agraciado, pois cabe a ele narrar, testemunhar e difundir.
Objeto de diversos estudos culturais,
o ex-voto é debatido por historiadores, sociólogos e antropólogos. Os romeiros
designam essas oferendas votivas como promessas ou milagres. A maioria das
graças alcançadas se relaciona a problemas comuns: morte, doença, perigo e
dificuldade, entre outros, mas o autor da súplica pode ser o agraciado ou não.
Um aspecto da desobriga ou entrega de ex-voto é participar da cerimônia em
circunstâncias especiais, usando vestes que procuram mimetizar o agraciado com
a devoção (SILVA, 1981).
Outra forma é depositar uma promessa apenas para lembrar à divindade o
pedido já feito, tratado como um ato superrogatório, uma súplica que se repete
por mais de um ano. Afinada com a idéia
de contato, o depósito caracteriza a criação de um vínculo entre o depositante
e o sagrado guardião, reflete um relacionamento espiritual. A qualidade
artesanal e os desempenhos técnicos dos objetos não interferem nos seus estatutos
exclusivamente sociológicos. Seja uma bela escultura ou uma simples fotografia
ou bilhete o que caracteriza a promessa é o fato de ser constitutivo do desejo
do ser humano de usá-lo para servir de intercâmbio com a divindade, seja como
ato propiciatório, de agradecimento ou como ato superrogatório. As promessas
comunicam a universalidade do processo social de troca.
Ligadas à cura das doenças, as oferendas votivas foram agregadas às
procissões e caracterizam-se como uma prática de medicina popular que o colono
luso difundiu durante a fase do Brasil-Colônia. Essas práticas populares se
desenvolveram com a chegada dos religiosos portugueses, foram utilizadas como
forma eficaz pela Igreja oficial para combater as pestes e epidemias e sobrevivem
em São Cristóvão - SE até os dias atuais graças à força da tradição, sendo um
dos ritos desenvolvidos em torno da imagem do Senhor dos Passos.
O resultado dessas práticas de desobriga votiva, desenvolvidas durante a
colonização, em São Cristóvão formou um acervo de objetos sagrados, os quais
compunham a iconografia da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, que no período
imperial, passa também a se chamar Igreja Senhor dos Passos. A presença dos
objetos justificava a denominação do “pátio dos milagres” para o claustro onde
ficavam expostos para a visitação.
Essa coleção de objetos, em 1990, torna-se o acervo do chamado Museu dos
ex-votos e, em 2007, é retirado do claustro, local em que sempre estiveram
guardados. Drasticamente resumido, o acervo é recolocado num salão localizado
na lateral esquerda da referida igreja. O trabalho de reorganização do museu em
2008 gerou um documento chamado “Saltério de madeira”, texto pré-selecionado
pela comissão do 24ª edição do Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade\2011,
na categoria Pesquisa e Inventário de Acervos promovido pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (PEREIRA, 2011).
Em São Cristóvão, esses objetos servem de intercâmbio com uma imagem do
Senhor dos Passos, à qual é atribuída a fama de ser milagrosa. Trata-se de uma
escultura barroca, em tamanho natural, feita em madeira que faz parte de um
conjunto formado por outras seis esculturas representativas dos chamados Sete
Passos. Essas esculturas compunham a representação iconográfica da Paixão de
Cristo e eram comuns nas igrejas da Ordem Terceira do Carmo do período
colonial.
Tais igrejas eram construídas ao lado da Igreja da Ordem Primeira do
Carmo e do convento dos frades carmelitas (conforme referiu Romeral (2009)),
tal como ocorreu em São Cristóvão.
Esboçada na Idade Média e trazida da Península Ibérica pelos carmelitas
durante a colonização, a devoção ao Senhor dos Passos é uma das primeiras a se
desenvolver em Sergipe, quando São Cristóvão ainda era capital da província.
Vinculada ao período da Quaresma, a devoção tem uma característica penitencial,
o que também lhe confere um tom roxo, comum desse tempo da liturgia católica.
Esta pesquisa resulta da ação de reorganização desses objetos sagrados
no novo espaço, no final do ano de 2008. O objetivo fundamental deste estudo é
identificar, quantificar, classificar e analisar a relação dos objetos sagrados
a partir da relação com a saúde\doença. Portanto, a pesquisa cumpre o papel de
catalogar as promessas de São Cristóvão e classificar esses signos no contexto
em que eles emergem, bem como os bilhetes.
Esses objetos sagrados de caráter coletivo são expressivos de crenças
mágico-religiosas associada à saúde, à doença e à cura e resultam de práticas
profiláticas e terapêuticas da medicina popular, sendo expressão de uma
dimensão ordenadora e classificadora dos sistemas simbólicos, os quais partem
do pressuposto de que há uma ação regular e mecânica da natureza. A sua
eficácia se assenta na crença coletiva no poder mítico desses objetos para
representar situações que envolvem seres e coisas e destes com a divindade,
através das leis de simpatia e antipatia num movimento de dar receber, e
retribuir, uma ação que gera alianças e resulta em relações.
O ex-voto é objeto da Antropologia religiosa, mas também da Antropologia
médica, a considerar a Antropologia da Doença proposta por François Laplantine
(2004, p.13-14), que faz estudos comparativos dos diversos discursos,
conhecimentos e práticas na interpretação da doença e na resposta terapêutica,
a partir dos quais, distingue dois campos de conhecimento e de significado: “o
campo do doente” e o “campo do médico”. O primeiro esboça a etiologia subjetiva
da doença, realizada pelos próprios doentes e é caracterizado pelo sofrimento e
pela consciência da experiência mórbida (sentimentos), pois o significado que o
doente atribui ao que lhe acontece não progride no mesmo ritmo da ciência; ele
reinterpreta e filtra em função de sua carga simbólica. O segundo campo é o da
atuação da medicina, que realiza diagnóstico, prognóstico e tratamento, produz
os enunciados socialmente legítimos e fundamenta sua prática na recusa de uma
parte da experiência do doente, “notadamente do prazer, do desejo, da linguagem e do
triunfo sobre o sofrimento”.
A etnologia microssociológica proposta por Laplantine (2004, p.15-18)
sugere prestar atenção igualmente ao que é vivenciado pelos doentes e
vivenciado pelos médicos em sua prática, ou seja, estudar a “doença em terceira pessoa”, que abrange
o conhecimento médico objetivo e os valores médicos integrados ao imaginário da
medicina. Mas também a “doença em
primeira pessoa” – que engloba o estudo da subjetividade do doente que o
faz perceber quando ele está mal ou em plena forma; também em primeira pessoa
está o estudo da subjetividade do médico, pois ele também tem uma compreensão
não médica da patologia e da terapia, uma vez que ele também é doente
eventualmente. Os “processos de troca entre os que curam e os que são curados”
acontecem entre o saber do doente sobre sua doença e a experiência vivida pelo
médico, seja curando ou sendo curado.
No itinerário etimológico proposto por Laplantine (2004, p.17, 18), com
relação à doença tomada como objeto do conhecimento científico (ato de
objetivação de um saber positivo), é importante e necessário que uma verdadeira
antropologia da saúde se volte também para o doente, tornando-o um “autêntico
polo de conhecimento”. Essa antropologia visa menos à doença e volta-se mais
para a “ideia de doença” e, também,
olha menos para a cura (constatada pelas análises laboratoriais) do que para a
“ideia de que os que curam e os que são curados fazem da doença e da cura
sonhadas, imaginadas, espiritualizadas, representadas, ou seja, vivenciadas”.
A cultura biomédica é difusa e largamente dominante, e a representação
da doença se constrói através do contato com ela e sob sua influência. Essa
cultura não seria capaz de confirmar a neutralidade que a ela se atribui, pois
todo o discurso sobre a doença, incluindo o do médico, procede de uma seleção e
elaboração, bem como de uma opção teórica. O discurso do médico, segundo
Ségalen (1980, p.52-53), citado por Laplantine (2004), visa “transformar a ressonância emotiva em
noções intelectuais, em mudar
automaticamente as imagens concretas, terríveis enquanto imagens, em elementos
abstratos do diagnóstico”.
Laplantine (2004, p.213), após apresentar os processos
etiológico-terapêuticos, ou seja, “como
fiquei doente, como vou me curar”,
faz o deslocamento das causas para as razões que provocaram a doença. Ao
observar as diferentes respostas ao “porquê
da doença”, tomando como exemplo um filme – Aller à Saint-Sabin, de 1981 – uma peregrinação a um santo
curandeiro, este descreve a relação entre saúde e salvação[3], e coloca num novo ângulo o problema
das possíveis relações entre indivíduo e sociedade. O autor observa dois tipos
de situações, a primeira ocorre nas situações terapêuticas ou no uso de ervas,
em que o religioso e o que se chama médico estão estreitamente ligados, cabendo
ao antropólogo procurar o não dito, como no culto de Saint Sabin, uma prática da medicina popular; a outra acontece nas
situações em que a função médica aparece desligada da função religiosa,
assumindo uma especificidade e especialidade prática, como é o caso do
exercício da medicina naturalista.
A nova forma ou a forma residual da eventual dimensão religiosa (da
medicina) não é percebida pela sociedade, nem pelos que são curados ou pelos
que curam. O fundamento do conhecimento médico constituiu historicamente em uma
lenta “desimplicação do mal” – uma concepção sacra ou filosófica do homem –, da
história da doença evocada em sua positividade naturalista que, segundo Henry
Ey (1981, p.3 apud Laplantine, 2004), tem como preâmbulo epistemológico
“arrancar” a doença da religião, da filosofia e das ciências humanas a fim de
resgatar uma “ordem natural”. O desejo de se libertar do pensamento “não
científico” reflete a clivagem da natureza\cultura que separa o saber
naturalista do saber mitológico – saber ambivalente.
Laplantine (2004), partindo do culto a Saint-Sabin distingue dois modelos interpretativos contrários
dentro da medicina popular, a doença-maldição e a doença-sanção. A desgraça
resultante da maldição divina é uma interpretação religiosa como consequência
de fatalidade, ou resultante de uma divindade maldosa, e gera resignação,
prostração e purificação. Essa visão marca todas as culturas. Na
doença-punição, ocorre o contrário, o doente é punido por negligência, por
excesso ou mau comportamento, ou caracteriza uma transgressão coletiva das
regras sociais. A doença aparece como pecado coletivo e individual e castigo
merecido, associado às noções de responsabilidade, justiça e reparação.
As promessas
doadas ao Senhor dos Passos põem em evidência a doença como um caso particular
da desgraça social e a saúde como a obtenção de salvação. O reconhecimento
tanto do médico quanto do religioso, quando o indivíduo passa pela experiência
de uma afecção que desconcerta literalmente sua existência ou quando a cultura
vive uma crise de seus fundamentos, permite estudar as respostas
interpretativas da desgraça social e das desordens biológicas às quais o grupo
reage, por considerá-la calamidade.
A medicina
iludida pela despersonalização dos agentes patogênicos mágico-religiosos
(divindades, gênios, feiticeiros), descontextualiza culturalmente a doença,
ocultando a ligação do doente com a sociedade. Citando a mesma crítica à
religião cristã feita por Terrin (1898, p.195), quanto ao fato de ter abdicado
do seu potencial curativo, Meneses (2008, p.175) diz: “é totalmente lógico que
a doença como mal, ou melhor, como concretização física e determinativa do
mal”, entre no contexto das religiões e defronte-se com o problema da vida e do
seu significado.
Ouçamos
agora o que dizem os romeiros de São Cristóvão – suas palavras.
O que
passaremos a transcrever é uma etiologia subjetiva da doença – o discurso do
doente –, um discurso sobre a doença visto pelo sistema dominado, uma expressão
do campo do doente, portanto uma Antropologia da Doença.
3. OS BILHETES DOADOS AO SENHOR DOS
PASSOS
Os bilhetes
depositados pelos romeiros são pequenos textos que descrevem pedidos ou relatam
brevemente graças alcançadas e são eminentemente simbólicos. O sentido
discursivo, ou seja, o uso da linguagem com finalidade de sentido, com objetivo
de significar elementos, contexto, valores diferenciados, está presente nesses
breves textos e, como linguagem verbal, é reconhecido e codificado pela
sociedade. O bilhete é o “dito” do romeiro e a intenção de ler o discurso sobre
a doença presente neles – etiologia subjetiva do doente – tem por finalidade
perceber as diferentes formas de comunicar e interpretar a cura. As
transcrições dos bilhetes foram feitas mantendo os chamados erros de português,
isto é, as variantes não padronizadas do português brasileiro e os desvios
ortográficos, mas, eventualmente, alguma palavra foi traduzida para facilitar a
fluidez da leitura da etnografia. Entre parênteses, está a numeração com a qual
foram registrados no museu.
Vejamos o
que esses símbolos dizem sobre o romeiro, a sociedade, a religião e a doença,
sobretudo a crença na cura através do poder do Senhor dos Passos. Também a
maneira como recriam o discurso da Igreja e da medicina. Estes textos permitem
conhecer os valores e as intrincadas relações em que vivem, suas necessidades
mais prementes e as ideias que podem estar sustentando suas crenças.
Como
símbolo, o bilhete pode representar qualquer romeiro e suas palavras,
independentemente da singularidade de cada fiel. As palavras dirigidas ao
Senhor dos Passos formam um código de comunicação, uma espécie de diálogo, não
um diálogo único, mas o diálogo do crente e sua crença na cura e na salvação,
um diálogo social, prenhe dos valores cristãos, mas permeado por enunciados
médicos. Em grande maioria, trazem uma carga afetiva e emocional e refletem
vínculos significativos de solidariedade humana – a subjetividade do doente. Em
geral, é anônimo, embora quem escreva peça por pessoas cujos nomes são citados
em parte ou integralmente. Também podem ser ingênuos quando são escritos por
crianças ou adolescentes, ou confusos, se escritos por pessoas que têm pouco
domínio da escrita. Nascem das necessidades humanas e se tornam palavras
significadas, pedem ou agradecem uma cura, falam de uma doença, expressam um
desejo ou uma vontade, são signos em natureza e essência. As palavras permitem
conhecer um pouco do pensamento, valores e práticas desta cultura religiosa e
ajudam na interpretação dos sentidos da representação – a promessa.
Vistos como
preces, os bilhetes permitem lançar luzes sobre as relações entre a crença e o
rito, pois nela o crente age e pensa. A prece consiste em movimentos materiais
dos quais se esperam resultados; nela aparecem as razões, as circunstâncias e
os motivos de sua enunciação, mas também é um credo e exprime ao menos um
mínimo de ideias e de sentimentos religiosos. Uma prece não é apenas a efusão
de uma alma, o grito de um sentimento – é um fragmento de uma religião. Nela,
ouve-se ressoar o eco de toda uma imensa sequência de fórmulas: é um trecho de
uma literatura, é o produto do esforço acumulado dos homens e das gerações, ela
é, antes de tudo, um fenômeno social, pois, mesmo uma prece individual, é cheia
de frases consagradas, ou seja, sociais. É um discurso ritual adotado por uma
sociedade religiosa, e sua virtude e eficácia é a religião que proclama (MAUSS,
1979).
Esses
bilhetes expressam a livre conversação do indivíduo com o Senhor dos Passos e a
Senhora das Dores. Diferentemente da prece de enunciado fixo que é estritamente
litúrgica e tradicional – a exemplo do ofício a Senhor dos Passos[4]
– os bilhetes são orações livres, individuais e interiores, cuja forma é
escolhida pelo próprio crente, segundo seus sentimentos e motivações, podendo
ser de expiação, de ação de graças, de solicitação, hino ou uma prece votiva.
As promessas – os ex-votos – podem ser vistos como preces materializadas, assim
como o escapulário, o rosário, o amuleto e as medalhas com dizeres. As promessas
vistas como discurso sobre a doença são fragmentos do discurso do médico e do
doente.
Material
etnográfico precioso por sua linguagem descritiva, o bilhete oferece elementos
mais objetivos sobre o tipo de doença e a interpretação da cura imaginada. A
linguagem verbal possui forte convenção entre significado e significante, ao
contrário dos objetos, caracterizados pela linguagem não verbal, que exigem
camadas de interpretação para serem retiradas.
A “PROMESSA” E O “MILAGRE”
O dar não
se constitui num ato desinteressado, e as retribuições são assimétricas,
ambiguamente voluntárias e obrigatórias. Elas são trocas úteis e simbólicas,
portanto, eficazes. O romeiro estipula a forma de retribuir – a estética da
retribuição – a confecção e o modo de oferecimento; entretanto, a troca com o
Senhor dos Passos é estipulada numa coletividade, ou seja, as pessoas que
trocam são pessoas morais e não indivíduos. As trocas de bens garantem a
circulação de riquezas, não no sentido econômico, embora ele esteja presente, e
incluem bens mais ou menos alienáveis e também economicamente úteis ou não.
Mas, o objeto das trocas na procissão de Passos são valores, regras e ideias. A
troca de dádivas com o Senhor dos Passos cria um vínculo sobrenatural. O dar
implica receber, entretanto, esse receber e dar assume múltiplas formas e
conteúdos, torna-se um vasto sistema de prestações e contraprestações – e os
bilhetes e as promessas expressam um pouco essa multiplicidade que engloba a
vida dos romeiros.
As promessas referem-se, em geral, a um
momento posterior ao momento da escrita do bilhete – o voto, embora a entrega
do objeto sagrado possa não ser precedida de um bilhete. O voto, o bilhete,
sela um compromisso, uma dívida ou promessa, motivo pelo qual entre os romeiros
se usa o termo promessa para se referir às oferendas – em verdade, o objeto é
fruto da promessa. Através dele, o romeiro se compromete consigo, com o Senhor
dos Passos e com sua comunidade de fé, como se pode ver nos trechos dos bilhetes
seguintes:
“[...] eu prometo trazer
um bote de vela.”; “[...] prometo trazer dois metros de fita”.
Ele informa
a maneira como irá proceder para cumprir a dívida, que pode ser através de um
signo:
“[...] Nosso Senhor parsso
[Passos] neste méis [mês] eu esto [estou] pedindo a tua bensa [benção] i [e] a
tua cular (cura) para minha mãe pala o no [no ano que vem] minha mãe vai fazer
uma péna [perna] [...]” (Bilhete, acervo nº 3956, 2008).
Também
revela o gesto, a ação que está se comprometendo a realizar para cumprir a
dívida caso seja atendido. Por exemplo: com o jejum de álcool, trazendo velas,
fitas ou um signo que represente uma perna. Nalguns bilhetes, aparece a
afirmação de fé – a prece –, a crença no poder milagroso do Senhor dos Passos:
“[...] sei que todos
pedido [s] vai [vão] ser atendido [s]” (Bilhete, acervo nº 3930, 2008);
“Eu deposito toda minha fé
no seu puder [poder]” (Bilhete, acervo
nº 3978, 2008);
“Eu estou muito doente mim
cura com teo [teu] pode [poder]” (Bilhete, acervo nº 3970, 2008).
Outro diz:
“[...] eu sinto dentro de mi eu vou ser
curada do meu estomgro [estômago] pode ser grastete [gastrite] pode ser um
câncer pode ser ferida sexu [sexo]. o que for mais [mas] eu cofio [confio] ei
[em] Deus” (Bilhete, acervo nº 3945, 2008).
Noutros bilhetes encontrei as seguintes
palavras:
“Porque eu confio no seu
milage [milagre] sei que eu vou aucacar [alcançar] este milagre” (Bilhete,
acervo nº 3948, 2008).
O termo
“milagre” também é atribuído a esses objetos, sugere uma coisa muito difícil de
ser conseguida sem a ajuda e o poder da divindade. Segundo Silva (1981), o
termo “milagre” é usado por pessoas que habitam em zonas urbanas, enquanto
“promessa” seria o termo empregado por pessoas que moram na zona rural. Ao
informar como ele procederá para pagar a “promessa”, alguns poucos propõem uma
troca de favores com o Senhor dos Passos. O mais comum, todavia, é que o
romeiro se vincule à divindade a partir de um episódio particular e passe a visitar
anualmente o santuário como forma de gratidão, de retribuição:
“[...] me ajude meu Deus
aeu racopera [a eu recuperar] a minha saúde pelo amor de Deus quedo [quando] eu
fica [ficar] sar [sã] eu vou compra 2 [dois] metro [s] de fita branca para
Sonho [o Senhor] do [s] Passo [s]” (Bilhete, acervo nº 3966, 2008);
“[...] que eu fique curado
da minha cabeça para sempre que eu vou para viacaqia [Via Sacra] de peis de
cauco [pés descalços] veteda de Branco [vestida de branco]” (Bilhete, acervo nº
3965, 2008);
“[...] faca [faça] com que
dizapareca [desapareça] toda inconia [insônia] toda depressão todo nervocismo
[nervosismo] que eu rezo 1 pai de nosso 1 ave maria [Maria] e Santa Maria i do
[e dou] 1 vela branca 1 dia de segunda feira” (Bilhete, acervo nº 3975, 2008).
O romeiro
também conta com a ajuda do Senhor dos Passos para cumprir seu voto:
“Sei que vou se [ser] curada com sua ajuda vou paga
[pagar] minha promeca [promessa]” (Bilhete, acervo nº 3964, 2008).
O bilhete
comunica de forma breve:
“Que o senhor mim der [dê]
um Otimo [ótimo] Parto” (Bilhete, acervo nº 3991, 2008),
Ou de forma
mais extensa:
“Deus tudo que eu mais
quero na vida é um filo (filho) Não importa ele menino ou menina só rezo que
venha com saúde. Eu quero senhor poder ter a graça de ser mãe, poder sentir o
amor de um filo mim preocupar, rir, chorar amar um amor que nunca amei, um amor
de mãe (Bilhete, acervo nº 3923, 2008).
Os bilhetes
se caracterizam quanto ao conteúdo em agradecimentos e pedidos ou podem conter
ambos. O destinatário pode ser o autor, um ou vários parentes ou mesmo amigos e
conhecidos. Quanto ao objeto do pedido: saúde, emprego\aposentadoria, casa,
felicidade, paz, libertação, purificação, casamento, ter filhos, sucesso
profissional, etc. Quanto à forma de pagar a dívida: trazer objetos, realizar
penitência, queimar fogos de artifício. O teor desses bilhetes revela,
portanto, as íntimas relações entre os romeiros e outros ritmos de equilíbrio
dos quais necessita para manter a sua saúde, seus laços de solidariedade e
parentesco, pedindo pela família e amigos, pelo marido, pelo namorado, pelo
cunhado, pela tia, pelo pai, pelo vizinho, pelo afilhado, neto, irmão,
sobrinha, colega, ou também de forma mais ampla e social, como nesse bilhete
que transcrevo integralmente:
“Agradecimento,
consagração e fortalecimento nas caminhadas deste ano que se segue e nos que
virão, a todos os meus amigos, conhecidos e colegas de trabalho, alunos e
familiares. Proteção e saúde aos necessitados, doentes, encarcerados, famintos
e oprimidos. Também por todos seres viventes. Senhor guiai a todos nós, nossos
passos e ao mundo inteiro. Que seja feita a vossa vontade. Amém.” (Bilhete,
acervo nº 181, 2010).
A grande maioria dos
bilhetes comunica um pedido do fiel, entretanto, num menor número deles o
romeiro faz um agradecimento que pode ser muito breve mantendo o sigilo do que
foi conseguido:
“[...] obrigado pela minha
cura” (Bilhete, acervo nº 3944, 2008);
“[...] obrigado por te
[ter] atendido o meu pedido” (Bilhete, acervo nº 3977, 2008).
OS MOTIVOS DOS PEDIDOS E AGRADECIMENTOS
Entre
situações tratadas nesses pedidos e agradecimentos, nos 357 bilhetes
examinados, predominam os motivos de doença física (45,79%), dificuldades
espirituais e psicológicas (12,04%) e também questões sociais (42,17%), uma confirmação
da visão abrangente das camadas populares em relação à doença e à cura. As
doenças e os vícios ocupam um percentual significativo entre os motivos que
levam os romeiros a pedir graças ou agradecer por bênçãos, assim como questões
sociais que incluem emprego, moradia, estudo e bens materiais. Para melhor
entender as interpretações da doença pelos romeiros, tomo por base a seguinte
divisão quanto à origem das doenças: doenças fisiológicas, doenças de origem
espiritual (pecaminosas e demoníacas), doenças psicológicas e as doenças
sociais relatadas nesses bilhetes. As doenças de origem espiritual tomam por
base o mal e o pecado como explicação, gerando como interpretação os modelos
sanção\punição, maldição e salvação.
1 DOENÇA DO CORPO FÍSICO
A compreensão da doença como resultado de
desarranjos biológicos resulta na aceitação dos diagnósticos médicos, mesmo que
recorram à crença no poder e na força de Senhor dos Passos para resolver a
situação de doença. Assim, o romeiro pede, roga e suplica:
“[...] leve todos os males
e todas as causas dessa alopecia de minha filha [...]” (Bilhete, acervo nº 41,
2010);
“Que eu consiga a
recuperação da minha coluna.” (Bilhete, acervo nº 122, 2010);
“[...] com o seu poder
todas as células fiquem sadias [...]” (Bilhete, acervo nº 8, 2010);
“[...] tira esse nódulo do
meu seio.” (Bilhete, acervo nº 148, 2010);
“[...] livre desse mioma e
fique grávida [...]” (Bilhete, acervo nº 165, 2010);
“[...] fique boa da doença
dela que é alergia [...]” (Bilhete, acervo nº 42, 2010);
“[...] pedir pela minha
artrite reumatóide [...]” (Bilhete, acervo nº 55, 2010);
“[...] que ela não venha a
operar os olhos [...]” (Bilhete, acervo nº 156, 2010);
“[...] curai a diabete da
minha mãe [...]” (Bilhete, acervo nº 179, 2010);
“[...] agradeço pela cura
do meu câncer e o restabelecimento da minha saúde.” (Bilhete, acervo nº 4001,
2008);
“[...] pela graça
alcançada na realização da retirada de um tumor de hipófise, em três cirurgias
[...]” (Bilhete, acervo nº 127, 2010).
Os termos usados – alopecia, coluna, células, nódulo, seio, mioma,
grávida, alergia, artrite reumatóide, diabetes, câncer e tumor de hipófise –
demonstram o contato dos romeiros com a linguagem da medicina científica, os
enunciados médicos. Estes termos legitimados socialmente e produzidos pela
medicina através do “campo do médico” – o sistema dominante – aparecem
modificados em função da carga simbólica do doente (LAPLANTINE, 2004). O
discurso da doença, elaborado pelas religiões populares, se constrói no
interior e a partir dos discursos oficiais, exprimindo as contradições que
encerram a sua produção, portanto, os grupos subalternos são capazes de
minimizar, subverter e improvisar nos sistemas de forças a que estão
submetidos, como referiu Montero (1985). O discurso da religião mistura-se ao
discurso médico e na linguagem do doente aparece como desejo de vitória sobre a
doença e o sofrimento através da intercessão do Senhor dos Passos:
“[...] que um [o] senho [senhor] retirem [retire] toda as
dor menteza [dormência] das mão [s] cular [cura] minha vista cular [cura] as
minha pena [penas] retiral [retira] as
dormenteza [dormência] das pena [pernas] a me [minhas]. Ti [te] amo” (Bilhete,
acervo nº 3956, 2008).
Nos
bilhetes, os motivos das doenças aparecem de forma breve e específica, pois
abrangem contextos familiares mais amplos, onde o romeiro pede pela paz e saúde
de forma geral. Mas pode ser mais específico e pedir a cura de certa enfermidade,
certo órgão doente nele mesmo ou num ente querido:
“Hoje eu pesso [peço]
especialmente por minha irmã Edeleuza que e [é] uma pessoa tão sofrida que Deus
de [dê] a cura e cobata [combata] esse câncer que ela têm [tem.] senho [Senhor]
cura minha mãe meu pai dessa diabete [diabetes] pressão senho [Senhor] meu pai
Edson que o senho [Senhor] cure todas as dores do corpo dele senho [Senhor]
cura Alex Cris” (Bilhete, acervo nº 3970, 2008).
Outros
bilhetes são mais concisos e diretos, como se segue:
“[...] agradeço pela cura
do meu câncer e o restabelecimento da minha saúde” (Promessa nº 4001, 2008);
“peço a cura dessa intocicação [intoxicação] que ainda não encontrei remédio”
(Bilhete, acervo nº 50, 2010);
“Daime [Dai-me] a cura e o
funcionamento dos meus rins” (Bilhete, acervo nº 4007, 2008); “[...] que mim
caure [cure] do meu estomgo [estômago]” (Bilhete, acervo nº 3982, 2008);
“Pela saúde [de]
Auxiliadora pela recuperação da depressão [.] Por Elmiro que ele venha ser
curado da adenóide” (Bilhete, acervo nº 4034, 2008).
2 DOENÇA-PUNIÇÃO OU DOENÇA-SANÇÃO
Ao se
confrontarem com o “porquê da doença”, como se referiu Laplantine (2004),
alguns romeiros a interpretam como fruto do pecado e atribuem sua a cura à fé,
um modelo interpretativo que o autor refere como “doença-punição”. Essa forma
de perceber a doença e a cura pode ser vista no seguinte trecho do bilhete
transcrito a seguir:
“[...] nessa quaresma quero me penitencia
[penitenciar] com jejum do alcoo [álcool] em reparação da minha fé” (Bilhete,
acervo nº 629, 2009).
Para
perceber a concepção da doença referida como mal ou fruto do pecado, na qual a
religião é utilizada como força terapêutica para a extirpação do mal, ou seja,
– a cura estando na dependência da ação de Deus –, ressalto as seguintes
passagens de bilhetes que ilustram essa forma de interpretar a doença e a cura:
“Pesso [Peço] que perdoi
[perdoe] o meu pecado. Que muita coisa que eu fazia não faço mais” (Bilhete,
acervo nº 3977, 2008);
“Para que eu não sofra
Deus tei [tem] de olha [olhar] para mi [me] fazer feliz. arrancano [Arrancando]
pela Raiz este mal que mi [me] prodijica [prejudica]” (Bilhete, acervo nº 3946,
2008);
“Sei que toda doença vai
eibora [embora] para sempre todo mal que sinto continui [continue] na fé não
vou de sistir [desistir] da minha fé” (Bilhete, acervo nº 3964, 2008).
3 DOENÇA-MALDIÇÃO
O modelo
interpretativo da “doença-maldição”, conforme proposto pelo antropólogo francês
Laplantine (2004), pode ser percebido na seguinte transcrição:
“[...] livre-nos dessa
peste maldita [o câncer] e que minha mãe se livre desse mioma e fique grávida
[...]” (Bilhete, acervo nº165, 2010).
A desgraça
aparece como resultante de uma fatalidade ou de uma divindade maldosa. A
positividade naturalista da medicina e a sua intenção em arrancar a doença da
religião e da magia não foram eficazes; é o que demonstra a fala desse fiel. O
discurso sobre a doença presente nos bilhetes que são transcritos adiante
demonstra que o mal e suas origens estão presentes nas respostas, nas
interpretações da doença e da cura.
A concepção
do mal seja de origem sacra, filosófica ou da feitiçaria se mescla na visão
mágico-religiosa que se expressa, por exemplo, assim:
“[...] que eu tenha o
corpo fechado.” (Bilhete, acervo nº191, 2010);
“[...] me faça uma menina
boa” (Bilhete, acervo nº149, 2010);
”[...] livra-nos das
perseguições, dos malefícios, macumbas [...]” (Bilhete, acervo nº168, 2010);
“[...] coloque uma
barreira e não deixe que os olhos dela me enchergue [enxergue].” (Bilhete,
acervo nº169, 2010);
“Nossa Senhora das Dores
leve todas estas dores do meu corpo toda essas doença” (Bilhete, acervo nº
3951, 2008);
“[...] faz uma vizita
[visita] a iago [Iago] curando ele de todo mal toda doença que estive sintindo
[sentindo] agorra [agora] e sempre mostra seu puder [poder.]” (Bilhete, acervo
nº 3961, 2008);
“[...] fazem [fazei] com
que este mal mi [me] dizapareca [desapareça] que eu sinto na cabeça i [e] no
meu corpo cofio [confio] ei [em] seu puder [poder] o seu [a sua] graça i [e]
minha fé” (Bilhete, acervo nº 3962, 2008).
O Senhor
dos Passos e a Senhora das Dores, além de protetores e intercessores divinos,
são também vistos como curadores, tratadores e também feiticeiros e mágicos,
como se viu nas falas acima. O sincretismo a que tantos referem aparece em meio
a esses pedidos numa demonstração de que a medicina popular e a religião popular
recebem influência das culturas de negros, indígenas e brancos.
4 DOENÇA-SALVAÇÃO
O sentido
de salvação associado à doença se exprime nos pedidos por “libertação” pelo
vício de fumar, beber que são numerosos e, em sua maioria, feitos pelos irmãos,
sobrinhos, amigos, esposas e, principalmente, pelas mães aflitas, como por
exemplo:
“A saúde do meu filho
Sivaldo qui [que] liberta ele desse mal mae zinha [mãezinha][5]
do céu” (Bilhete, acervo nº 4029, 2008);
“Virgem mãe das dores
entercede [intercede] por este filho N.P.M. do vício do álcool te agradeço”
(Bilhete, acervo nº 34, 2010);
“[...] que meu filho vai
ser liberto desta bebida” (Bilhete, acervo nº 4042, 2010);
“[...] que ajudar também
meu pai que de para de [ele] beber” (Bilhete, acervo nº 642, 2009);
“[...] para que meu tio
E.S. pare de beber aquele alcool” (Bilhete, acervo nº 4045, 2008);
“[...] venho através desta
pedir que realize um milagre de libertação em R.S.N. dos vícios de jogar e
beber; com isso prometo que o levarei a procissão de Senhor dos passos vestido
de roxo” (Bilhete, acervo nº 3999, 2008);
Um deles é
mais enfático, trata-se de um superrogatório, citado anteriormente. Expressa o
tempo de espera pela graça de uma “mãe sofredora”:
“Pela segunda vez venho
pedir pela libertação da bebida e das drogas por J.R.F.C. si [se] eu alcançar
esta graça com fé em Deus no próximo ano estarei aqui trazendo uma foto dele
como agradecimento. Ao nosso Sr. dos Passo. Olha por essa pobre Mãe tão
sofredora” (Bilhete, acervo nº 163, 2010);
O excesso,
a negligência, o mau comportamento, a transgressão às regras sociais são tidos
como pecados individuais ou coletivos, gerando a doença, o vício, que é visto
como mal e para ele se pede libertação e cura, um sentido de salvação para um
mal que é moral, religioso, não apenas físico de dependência da droga. Em
alguns poucos bilhetes, o pedido é feito pela própria vítima do vício:
“Senhor dos passos que me
ajude que eu deixe as drogas e mi [me] lhifre [livre] ds [dos] maus olhos
grosso [s]” (Bilhete, acervo nº 36, 2010);
“Senhor dos passos, min
Ajude avencer [a vencer] meus obstáculos da minha vida, retira esta cachaça da
minha vida... min [me] liberta desta [deste] mal” (Bilhete, acervo nº 64,
2010).
5 DOENÇA PSICOLÓGICA
O
entendimento da doença psicológica como mal pode ser percebido no bilhete a
seguir, pois ele relata uma série de medos (doença psíquica) associados a
doenças físicas que a romeira identifica como o que a impede de ser feliz e de
se salvar:
“Eu vou cer [ser] curada
do mal que eu sinto que e [é] fumar medo de cer [ser] feliz. Medo de viajar de
pressão [,] tontice na cabeça [,] grastite nervoza [gastrite nervosa] usra
[úlcera] tirroide [tireóide] ei fim [enfim] todas as doença que mi [me]
atrapalha minha vida espeiro [espero] que eu vou ser felize [feliz] para sempre
si [se] Deus quiser” (Bilhete, acervo nº 3944, 2008).
Segundo
Montero (1986), a eficácia do pensamento mágico na cura de distúrbios
psicossomáticos se funda na sua capacidade de atribuir significados às
desordens fisiológicas. O mito oferece uma linguagem a partir da qual a dor, a
ansiedade e a confusão podem ser formuladas, pois ele produz significado e esta
linguagem é muito mais eficiente do que a linguagem médico-científica, que
antepõe a relação micróbio-doença como possibilidade à cura. A medicina limita
a interpretação das disfunções orgânicas aos sintomas fisiológicos, enquanto a
interpretação mágico-religiosa integra os problemas domésticos, amorosos e
financeiros, pois tem a ver com a desorganização pessoal, familiar e social do
sujeito: desemprego, conflitos familiares e as crises.
6 DOENÇA SOCIAL
Os bilhetes
que relatam pedidos, desejos e conquistas sociais e financeiras são em número
significativo e demonstram que as questões sociais para os romeiros estão
intrinsecamente ligadas ao desejo de melhorar a vida:
“[...] que minha mãe ganhe
uma casa própria.” (Bilhete, acervo nº 628, 2009);
“[...] pelo meu pão de
cada dia e pelo trabalho do meu marido.” (Bilhete, acervo nº 671, 2009);
“[...] solte este nó de
sair o meu empreste [empréstimo] para pagar minhas dívidas.” (Bilhete, acervo
nº174, 2010);
“[...] ajude eu na
faculdade do meu filho [...]” (Bilhete, acervo nº 681, 2009);
“[...] passar no meu
vestibular [...]” (Bilhete, acervo nº644, 2009);
“[...] obtermos um bom
emprego.” (Bilhete, acervo nº4012, 2008);
“[...] ter nossa casa
mobilhada.” (Bilhete, acervo nº4016, 2008);
“[...] agradeço pela
aquisição dos meus sobrinhos [...]” (Bilhete, acervo nº4015, 2008).
Conforme Canesqui (1998 p.24 apud Meneses, 2008, p.183-184), “são
totalizantes as representações de saúde, doença das classes trabalhadoras, por
abranger concepção do homem como corpo, alma, matéria, espírito, e incluir as
relações afetivas e as condições de vida e trabalho”. A cura – considerada como recuperação do
corpo e, de modo mais abrangente, como salvação da alma – para Terrin (1998
apud Meneses, 2008), é o bem mais precioso que é buscado ainda que de forma
dúbia, ao tentar conciliar a terapia médica oficial à terapia religiosa, a
primeira por medicamentos e a segunda por orações e curas esperadas.
As palavras
escritas nos bilhetes acabam por se fechar na sua natureza de signo. O que elas
dizem é o que de fato os romeiros quiseram dizer: “libertai”; “abençoai”;
“iluminai”, “retirai”; “tocai a cabeça”; “min [me] cure das enfermidades”;
“perco [peço] a minha saúde e minha paz”; “te peço liberte meu filho das
drogas”; “dai a cura e a libertação”; “dê a paz e união”; “abre meus caminhos”;
“peço crê mais”; “peço ajuda”; “a graça de um emprego”; “a graça desse filho”;
“que deixe o alcoolismo”; “que eu consiga meu trabalho [e] terminar minha
casa”; “vender o carro”; “conseguir um companheiro maravilhoso”. Nessas
palavras, não resta dúvida, nem há espaço para interpretações, no entanto,
enquanto documento, seu discurso é polissêmico e enunciador e anunciador e se faz,
por diversas formas e sujeitos, o dito e o não dito. As dispersões que passam a
fazer parte dessas articulações estão aí presentes.
O museu dos ex-votos de São Cristóvão
- SE comunica a gratuidade de um Deus que responde ao que pede no mais simples
e verdadeiro ato de fé e também comunica através daquele que recebeu de Deus
uma graça e lhe agradece retribuindo com palavras, gestos e coisas. Pede crendo
que será atendido e confia na graça que é dádiva divina e dom divino. Em
síntese: pedir e agradecer. O crente pede, Deus dá, o crente recebe e retribui.
A crença na cura torna o “milagre” e a “promessa” simples e cotidianos.
A promessa reforça a fé do crente e
expressa o poder da divindade, mas também é um aspecto do comportamento do
doente em relação à doença e à medicina. Ao ler a doença com outra visão,
exprime com outra linguagem e a associa a um discurso de ascetismo místico. A
promessa expressa também uma necessidade de falar da doença e da cura.
A promessa exprime um pensamento
religioso ou mágico-religioso e também médico-mágico. Como documento e
discurso, a promessa exprime a relação da doença com o sagrado e da doença com
o social. É um discurso do campo do doente, mas também do campo sóciomédico,
manifestado numa cerimônia religiosa, reflete a subjetividade do doente e
confirma uma identidade entre medicina popular e a religião popular. Evidencia
o aspecto profilático e terapêutico da religião e o caráter abrangente da
percepção de doença e da cura das medicinas populares.
A entrega de promessas como resposta às
aflições de natureza corporal, amorosa e econômica, refere-se à
polifuncionalidade da procissão. O desejo de saúde física, como a cura do
câncer, a queda de cabelos, a dormência nas pernas, a saúde de um animal de
estimação, entre outras; o desejo de ter filhos, casar, ser feliz, refazer o
casamento, ter paz se soma aos desejos de ter emprego, casa própria, estudo,
carro e outros bens materiais. O discurso da doença no campo do doente é uma
linguagem da Antropologia médica e da Antropologia religiosa, que neste
trabalho, foi analisado, mas, sobretudo, aponta a necessidade de aprofundamento
maior sobre essa temática tão cara aos religiosos católicos e tão importante
nos estudos na área das Ciências Sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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teoria geral da magia. In: Marcel
Mauss: Sociologia e Antropologia. Tradução, Paulo Neves. São Paulo:
Cosacnaify, 2011. Primeira parte.
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SALLES,
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Senhor Jesus dos Passos. Aracaju:
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SILVA, Maria Augusta Machado da. Ex-votos e orantes no Brasil. Leitura
museológica. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1981. (Coleção Estudos e
documentos), v. VI.
[1] A autora é formada em Odontologia, é Sanitarista e Especialista
em Saúde Mental Coletiva e Mestre em Antropologia pela UFS.
[2]
Segundo Houais (2009), ex-voto é um quadro, pintura ou objeto a que se conferiu
uma intenção votiva. ETIM. locução latina; prep. Ex de ablativo, por
causa de, em virtude de e voto ablativo singular de votum, i
‘voto’do radical de votum, supino de vovere ‘fazer voto, obrigar-se’.
[3]
Laplantine (2004) observa que a raiz indo-europeia san (=conservação de si mesmo) deu, ao mesmo tempo, sanitas (=saúde) e salvatus (=salvação). Conforme nota nº 2, p.218.
[4] Apesar de ser conhecido como Ofício de Passos, reza-se
o ofício da Paixão de Jesus Cristo. Trata-se de um ato precatório que ocorre
por sete sextas-feiras seguidas, iniciado uma semana antes do início da Quaresma.
Esse ofício foi republicado em 2010 pelos carmelitas (Salles, 2010).
[5] Alguns
bilhetes são dirigidos a Nossa Senhora das Dores.